“Dosis sola facit venenum.” Paracelsus, 1538
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sexta-feira, 20 de agosto de 2021

“Uma vacina longe demais”

“Cada ciência tem a suas leis, as suas regras, o seu modo de fazer as coisas. As decisões decorrentes delas devem seguir as regras da ciência, impondo decisões lógicas e transparentes. Quando se trata de construir uma ponte, por exemplo, os detalhes técnicos não se debatem nos jornais, na televisão ou nas redes sociais. Não ouvimos “especialistas” de economia, ou de matemática, ou de sociologia, a defenderem que o betão do primeiro arco pode ou deve secar uma semana em vez das duas habituais. Não importa a urgência, a necessidade ou a bondade da obra: há normas de procedimento, há regras de segurança, há ciência. Fossem quais fossem as pressões, nenhum engenheiro aceitaria diminuir os prazos correndo o risco de que a ponte caia — eventualmente com carros e pessoas a atravessá-la.

Certamente, poderíamos dizer que a Engenharia é uma ciência bastante exacta — e a Medicina não o é. A Medicina é uma ciência aplicada, com graus de risco e de falibilidade que não são em geral bem compreendidos por quem raciocina sob o prisma das ciências exactas. A Medicina não é uma dessas ciências, mas tem igualmente as suas normas de procedimento, as suas regras de segurança. E não é a aparente urgência de tratamentos, exigidos diariamente pela loucura mediática e pelo pânico geral, que deve permitir ultrapassar as regras. No caso das vacinas em geral, antecipadas mais do que a segurança que sempre foi seguida impunha, e muito particularmente no caso da sua aplicação a crianças e jovens, não é isso que está a acontecer: a ciência médica está a ser ignorada, as regras estão a ser quebradas. Os argumentos que foram e continuam a ser utilizados publicamente acerca das vacinas em geral, e agora muito concretamente acerca da vacinação de jovens e crianças, são argumentos irracionais, emotivos e políticos. Isso é o pior que se poderia desejar para uma ciência que se pretende devotada a curar mas também, e antes de tudo, a não causar danos.

Os apelos recentes do Presidente da República e do responsável da vacinação (ambos excedendo de forma escandalosa e irresponsável as suas competências) são emotivos e políticos — dando de barato que possam ser “bem intencionados”. O vice-almirante, melhor do que ninguém, deveria saber o que pode acontecer quando se ignora a ciência militar e quando, pressionado por razões ou interesses de ordem política, se ordena uma ponte longe demais. A História lembra-nos como isso pode ser meio caminho andado para a tragédia; e, quer essa tragédia aconteça quer não, esse tipo de decisão não deixa de ser uma irresponsabilidade. Colocar em risco a vida dos soldados, ou mesmo achar normal a existência de eventuais baixas e de vítimas colaterais, pode ser uma ideia com que as chefias militares convivam tranquilamente. Mas não são aceitáveis. E, convém lembrar, nós não somos soldados; e convém também frisar que recorrer a crianças como soldados não é tolerável.

Pelos mesmos motivos, a posição do Presidente da República nessa matéria é absolutamente escandalosa, parecendo baseada em conhecimentos débeis do assunto, em hipóteses duvidosas, em desvario emocional, ou em possíveis interesses. É pena constatar que ele não é actualmente o defensor dos portugueses, tendo-se progressivamente transformado num risco para os portugueses. E a posição de António Costa, congratulando-se com uma decisão final que ele próprio e as autoridades que ele tutela manobraram de forma palaciana, seria lamentável se não fosse apenas o seu registo habitual, cínico e falso.

Repito, os argumentos usados pelos (ir)responsáveis e pelos especialistas (alguns deles médicos) são emotivos e não-científicos. Deixemos a ciência ser ciência, sem pânicos, emoções ou estados de alma. Ou seja, paremos de fazer o que andamos a fazer há um ano e meio. Vacinar jovens e crianças com a motivação emotiva de que temos de salvar o resto da sociedade é um argumento revoltante. Insistir nessa ideia quando já percebemos que a eficácia das vacinas é muito relativa é uma atitude puramente disparatada. Não podemos usar os nossos filhos como escudo para a pretensa defesa da saúde dos adultos; e justificar a administração de uma vacina insuficientemente testada para o bem da saúde mental dos adolescentes é, em si mesma, uma ideia que remete para o questionar da saúde mental de quem a defende.

Pessoalmente, na CoViD como em qualquer outra doença, tomarei todas as precauções possíveis e farei todos os tratamentos adequados. Mas há limites, e a segurança dos meus filhos é um deles. Se eu tiver que morrer por causa desse princípio, morrerei tranquilo; mas não submeterei os meus filhos a experiências terapêuticas e a riscos para me salvar. Sobretudo quando tudo indica que essa “solução” seja mais um fracasso e mais uma mentira a somar às anteriores. Sobretudo quando essas experiências se aproveitam do pânico de uma população desinformada e manipulada. Sobretudo quando essas experiências são exigidas e decididas por especialistas cobardes, por médicos cobardes, por políticos cobardes, por militares cobardes. Sim, porque só pode ser cobardia tentar usar crianças como um escudo humano. Deixem-nas crescer. E cresçam.”

Pelo médico Pedro Girão, num artigo que o jornal “Público” censurou ontem.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

“Negacionismo ou estupidez?”

 

Negacionismo é não reconhecer como verdadeiro um facto ou um conceito que pode ser verificado empiricamente.

Estupidez é fazer algo que nos prejudica a nós próprios e aos outros também, não beneficiando a ninguém.

Ao longo destes muitos meses de pandemia, tenho publicamente exposto as minhas opiniões sobre a mesma, quer na imprensa, quer em canais de internet, quer em revistas científicas.

E já me aconteceu muita coisa.

Já fui objecto de processos disciplinares, quer no meu hospital, quer na Ordem dos Médicos, fui impedido de trabalhar durante duas semanas por me recusar a ser testado para o SARSCoV2, fui interpelado na rua por não usar máscara, entre outros acontecimentos discriminatórios variados.

E, claro, devo ter sido amplamente vilipendiado por essas redes sociais fora, redes às quais não pertenço, vivendo assim em quase total ignorância desses insultos.

Mesmo assim, sei que um dos epítetos que repetidamente me aplicam é o de ser “negacionista”. Ora eu tenho lido notícias variadas sobre “negacionistas”, desde médicos, a juízes, passando por políticos e personagens do cinema e televisão. E tenho observado felicidade e gáudio de cada vez que algum destes “negacionistas” é atacado, processado disciplinarmente, fica doente, ou falece mesmo, com CoViD-19.

Só que estes “negacionistas” são muito diversos, sendo que (…) o denominador comum a todos os chamados “negacionistas” é a sua oposição às medidas impostas a todos nós, em nome do combate à CoViD-19.

Será que esta oposição às medidas é negacionismo, ou serão as medidas uma estupidez?

Eu sou contra a imposição destas medidas de combate à pandemia. Considero que são muito mais prejudiciais do que benéficas.

É que este balanço entre os malefícios e benefícios das medidas depende da quantificação de cada um dos pratos. (…)

Os malefícios das medidas não são só económicos (…) houve, há e vai haver também malefícios na saúde, quer de doenças não diagnosticadas, não acompanhadas ou não tratadas (devido ao direccionar prioritário dos recursos de saúde para a pandemia), mas também de doença mental, provocada ou agravada pelas próprias medidas.

Por isso, o balanço entre malefícios e benefícios das medidas não é simplesmente a economia versus a saúde, mas sim algo de mais complexo e em que a saúde potencialmente ganha num dos pratos da balança é também potencialmente perdida no outro.

Mas, para além dos malefícios das medidas, mesmo o seu benefício é alvo de dúvida e discussão.

Negacionismo?

Eu nego, e sempre neguei, as múltiplas sugestões/recomendações que agora são já quase unanimemente consideradas ridículas, e referidas com sorrisos e encolher de ombros, mas  que foram previamente levadas a sério e religiosamente cumpridas. (…)

Nem vale a pena falar sobre o número, legalmente limitado, de pessoas com que nos podemos sentar à mesa, ou então as setas que no chão nos obrigam seguir por um caminho e não outro, para não nos cruzarmos com alguém. Qual a evidência científica sobre a utilidade real destas medidas? E porque são seis pessoas à mesa, e não cinco ou sete, ou duas apenas, ou então vinte e oito? Quem terão sido as pessoas que um dia, sentadas numa mesa de reuniões num gabinete qualquer, optaram por este número que depois foi imposto a um país inteiro?

Somos capazes agora de rir e gozar com tudo isto. Mas será que o faremos também, daqui a algum tempo, com as outras medidas que os “negacionistas” refutam?

Nego e sempre neguei o uso obrigatório de equipamentos individuais de protecção, tipo “fatos de astronauta” utilizados no vírus Ebola (que se transmite por contacto directo e não pelo ar) e sem qualquer evidência ou sentido perante um vírus respiratório, e que impediram a correcta avaliação dos doentes, a sua auscultação, o contacto humano com eles, e causaram uma enorme ineficiência por tornarem toda a actividade médica e de enfermagem muito mais pesada e lenta. Quantos doentes terão morrido desnecessariamente devido ao uso destes equipamentos excessivos?

O uso destes “fatos de astronauta” teve também uma enorme contribuição para o terror generalizado que se espalhou, quer entre a população em geral, quer entre os doentes e os próprios profissionais de saúde. É realmente assustador vermos toda a gente vestida com aquilo.

E nem me vou alongar em relação a recomendações, vazias de evidência, que levaram a que os doentes CoViD fossem tratados de forma diversa de todas as outras doenças respiratórias graves que existiram e existem todos os anos, e que os fizeram ficar mais abandonados, isolados em enfermarias e em quartos de acesso limitado, ser ventilados mais precocemente, ser entubados e extubados de forma diferente.

Sempre me opus à obrigatoriedade do uso generalizado de máscara pela população saudável, no exterior ou em espaços interiores. No início da pandemia, a única situação em que existia alguma evidência (fraca) da utilidade do uso de máscara, era na prestação directa de cuidados a doentes com CoViD-19. Várias autoridades de saúde por todo o Mundo afirmaram mesmo a inutilidade do uso generalizado de máscaras pela população. A evolução subsequente da evidência científica não alterou de forma significativa o conhecimento nesta área. A própria OMS, numa sua recomendação de Junho, afirma que não existe evidência directa da eficácia do uso generalizado de máscaras por indivíduos saudáveis na comunidade para prevenir a infecção CoViD-19”. Numa actualização de Dezembro, a mesma OMS mantém que “há apenas evidência científica limitada e inconsistente que suporte a eficácia do uso de máscaras por pessoas saudáveis na comunidade para prevenir a infecção por SARSCoV2”. Será a OMS negacionista?

À excepção de modelos hipotéticos e de estudos realizados em condições laboratoriais altamente controladas, os trabalhos feitos em situação de vida real, e que comparavam casos de CoViD-19 entre pessoas que usavam máscara e as que não o faziam, não encontraram diferença significativa entre elas.

Ser contra o uso de máscaras é negacionismo, ou essa imposição é uma estupidez?

Considerei e continuo a considerar o encerramento de escolas uma das maiores aberrações nesta pandemia. Não é uma recomendação da OMS (pelo contrário, houve várias recomendações da OMS contra essa medida). Desde o início da pandemia que a evidência científica apontava para a ausência de qualquer benefício do encerramento de estabelecimentos de ensino, apesar de tantos e tantos “peritos” clamarem o contrário. Passado mais de um ano, tudo continua a apontar para a inutilidade dessa medida. Na Suécia, que não encerrou escolas, não houve qualquer aumento no número de mortes entre as crianças e a incidência de CoViD-19 entre os professores foi menor do que noutras profissões.

Nego e sempre neguei qualquer vantagem da testagem massiva, recomendada pela OMS e repetida por autoridades de saúde, peritos e curiosos por todo o Mundo. Não só não existia qualquer evidência de vantagem dessa estratégia, como a evidência que entretanto surgiu parece não encontrar qualquer efeito valorizável da testagem mais agressiva na evolução dos números da pandemia. Por exemplo, o Reino Unido fez 4x mais testes por milhão de habitantes do que a Alemanha, tendo esta no entanto menos 33% de casos. (…)

Nego, e neguei sempre, a utilidade do rastreio de pessoas saudáveis, com vista ao isolamento das que tenham um teste positivo para o SARSCoV2, bem como o isolamento dos seus contactos (e, muitas vezes, o isolamento dos contactos dos contactos). (…)

Sempre achei uma insanidade, no âmbito de um vírus respiratório, mandar toda a população de um País fechar-se em casa, seja qual for a denominação elegante que dêem à estratégia, seja “confinamento”, seja “dever cívico de recolhimento domiciliário”. Não existia há um ano, e continua sem existir, qualquer evidência digna desse nome que indique um menor risco de infecção a quem se feche em casa quando comparado com quem respira ar livre em plenos pulmões. Nem nunca isso aconteceu com outros vírus respiratórios, nem nunca fez sentido que assim fosse com este.

Choca-me, e sempre me chocou, a forma como apertar as mãos num cumprimento humano educado desapareceu dos nossos hábitos. Continua a não existir (como nunca existiu) evidência de que o contacto com as mãos, em superfícies ou objectos seja uma fonte significativa de transmissão deste ou de outros vírus respiratórios.

Sempre considerei, e continuo a considerar, criminoso impedir as visitas nos lares e hospitais. Ao longo deste ano, os surtos em lares ocorreram na mesma, de forma generalizada, como nos outros países. E morreram na mesma os idosos que teriam que morrer, e sobreviveu a maioria, como em todo o lado. Só que os que morreram fizeram-no sem se despedirem dos seus, e os que sobreviveram ficaram mais tristes e abandonados, muitas vezes sem conseguirem compreender porquê. E perderam mais um ano do (curto) tempo que lhes resta. Sem lhes darem a opção de escolha, nem a eles nem às suas famílias. Tanta gente que morreu e foi enterrada sem a família sequer os poder ver, despedir, fazer o luto! Criminoso. (…)

Se negacionismo é negar factos comprovados, e estupidez é fazer algo que a todos prejudica, será que sou eu que sou negacionista, ou isto é tudo apenas estupidez?

É que, sabem?, eu não sou conspiracionista, e não acho que estas medidas tenham sido escolhidas e impostas a todos nós graças a planos maquiavélicos para benefício de alguns.

Não. Tudo isto mais não é do que estupidez. Deles, e de todos nós que os seguimos.”

Pelo médico Tiago Tribolet de Abreu, no Observador de 13 de Junho

P.S. Devido à sua extensão optámos pela publicação parcial do artigo, sem prejuízo das ideias fundamentais.